Ave Maria

passo a cantar as crianças prostitutas
a singularidade dessas flores rotas que o fado semeou
sobre a tragédia grega sobre os escombros da própria vida
sementes que a vida atirou para fora de si mesma
crianças prostitutas, eu não sou digno de cantá-las, no entanto devo
pela lucidez do outono lá fora, pelos primícias do cruel inverno, devo

meninas prostitutas mercadas como diamantes, como escravas
como jovens lírios num mercado de horrores e lágrimas incolores
o lírio branco e puro em vós logo morrerá, logo se converterá em hera
e nascerá um obtuso sorriso de vosso rosto

meninas prostitutas, passo a ser vosso poeta
e minha lira não restituirá vosso calmo noturno, vossas vidas perdidas
não devolverá vossas casas de bonecas, a candura de vossa infância
minha lira não vos levará ao caminho de volta ao Éden
foste estregues nas mãos dos anfíbios dos répteis cedo demais

meninas prostitutas, tão claras quanto o primeiro arrebol
o primeiro ósculo a primeira carícia o primeiro momento
veiram das mãos, da boca raivosa da desventura
puras quanto a música das águas e já convertidas em silêncio
jovens quanto papolas na primavera e já convertidas em pântano

me sento à vosso lado onde que quer estejais e canto
nas esquinas nas docas nas zonas infectas do submundo escuro
onde os deuses ateus semeiam dor abandono carne putrefata
e acendo este poema, esta lanterna de palavras

meninas prostitutas traficadas de estupro em estupro
de violência em violência de senhor em senhor
de amo em amo - sem amor, sem amor!
perseguidas ao longe pela grandeza de cruz em cruz
se exingue um pouco de vossa candura todos os dias
Maria Madalena, a esposa de Jesus, padroeira das prostitutas
vela por vós noite após noite, coito após coito
vos aguarda com alegria, nos céus, nos céus, nos céus
e sereis recebidas com louvor, com trombetas, com cimbales
por Maria, a mãe de Deus!