Dia a Dia da Periferia
Eu ligo o som lá em casa, é inevitável,
A molecada vem de todos os lados,
E já, na porta, altos cumprimentos,
Comentários sobre o dia no Plano.
E, nesse entra e sai, vai e vem,
Todos se divertem
E alguns até esquecem que, às quatro e meia da matina,
A rotina se inicia: Arroz, feijão na marmita fria.
Mas fazer o quê? Se a lei aqui é sobreviver.
Todo dia é mais um dia d.
Será que um dia isso vai se inverter?
Só se alguém se envolver – Deus nos ajude!
- As chances de sobrevivência, é verdade, aqui, são poucas
E infelizmente grande parte das garotas
Com apenas 10, 12 anos estarão engravidando.
Famílias desajustadas, crianças são exterminadas,
Crescem mal alimentadas.
Problemas sociais aqui minam como pragas.
Nas escolas, são discriminadas pela dificuldade na assimilação,
Estão a um passo da reprovação, que ano a ano se tornará uma tradição.
De barriga vazia, ninguém se segura, não, e pra Rodoviária vão, em vão,
À procura de trabalho, ou trabalho escravo?
Qual a melhor definição?
Pois os métodos praticados são bem claros:
Trabalho, trabalho, por um mísero salário!
Ralam o dia inteiro por uma merreca de grana
Que mal dá pro pastel com caldo de cana,
Alimentação com a qual logo estarão de cama,
Logo mais em coma!
E nossas crianças, que já não tiveram infância,
Descobrem, como herança, um país que, como vai,
Não vai a lugar nenhum,
Pode crê, Thaíde e DJ Hum!
Irmãos da ruas, da vida, morte ao capitalismo genocida,
Viva Deus que nos guia,
Quanto mais de nós matam, mas nossa raça procria.
E todo esse mal a gente assimila, transforma em poesia,
Dia-a-dia da Periferia!
Dia-a-dia, dia-a-dia, dia-a-dia da Periferia!
Dia-a-dia, dia-a-dia, dia-a-dia da Periferia!
Eu ligo o som lá em casa logo muda o astral,
A molecada chega e esquece o medo do mundo brutal,
Viajando na idéia do bom som nacional
Que aponta um ideal e nos qualifica.
A entrar na ativa por uma paz coletiva,
Descobrir a resposta para uma pá de perguntas
A princípio até absurdas
Como o porquê sobreviver num verdadeiro inferno
Enquanto outros vivem em belos presépios.
No balão um play dá coro no seu carro esperto.
Aqui o que corre é o esgoto a céu aberto
E as pessoas vistas sem o menor crédito
Sinceramente vem na mente a violência,
Mas nosso som não prega essa essência.
E, nesse exato momento, coincidência ou não,
Meu irmão, Luizão, que havia chegado,
E eu nem tinha notado,
Diz que tem uma surpresa, e avisa:
- Aí, rapaziada, vai rolar pra vocês, nada mais nada menos
Que o mestre dos mestres:
Bezerra da Silva
- E em seguida se ouviu:
- Alô, alô todas as Favelas do meu Brasil!
E em cada rosto um sorriso verdadeiro, dá pra ver.
Venham ver o verdadeiro brasileiro,
Escondido em faces corroídas, deprimidas
Pelo sol a sol da lida
Um povo que apanha, apanha e se levanta com a certeza
Que na vida se ganha
Com trabalho, e não com artimanhas.
Sonha todo dia com melhores dias,
Nem que seja por um dia só
É nota 10 no baralho, no palito, no boteco, no jogo de dominó
E no batuque que rola, que fala da vida, ele se identifica.
Graças a Deus, ritmos íntimos negros dominando, enfim.
E só assim, todo esse mal a gente assimila,
Transforma em poesia,
Dia-a-dia da Periferia
Dia-a-dia, dia-a-dia, dia-a-dia da Periferia!
Dia-a-dia, dia-a-dia, dia-a-dia da Periferia!
Desligo o som de madrugada, a molecada abre.
Daí pra frente, até amanhã a tarde,
Só mesmo meu Deus que sabe o que vai acontecer.
A gente pode até nem mais se ver,
Mas fazer o quê?
Já disse: a lei aqui é sobreviver!
Todo dia é mais um dia d!
E, como se fosse a vez derradeira,
Ninguém vai embora, já acenderam uma fogueira.
E as duas e tarará, o som volta rolar
No box emprestado de um chegado.
O som é radical, Original Rap Nacional,
Considerado pela elite som de marginal,
Mas quer saber?
Ninguém daqui tá nem aí pro que a elite disser!
Chega, chega, basta!
Desta palhaçada, desta farsa!
Não espere pelo outro, faça!
A desgraça que rola
Não pintou de graça.
E nesse exato momento,
Coincidência ou não,
Vejo vir um camburão.
E, numa simples investida, numa ronda de rotina,
A calma que imperava foi por água abaixo...
A molecada, agora tensa
- Não, não vou ficar calado!
Batida rotineira, abriram minha carteira,
Apagaram a fogueira, esquentam de bobeira.
- Diz: que foi que eu fiz?
E a resposta foi um tapão no meio do nariz.
O sangue sobe e a cabeça vai à lua,
Me lembro de um chegado, velado, no meio da rua.
E o palavrão na mente no momento é a melhor ajuda.
Tudo tem a hora certa, e nessa,
Melhor ficar na sua.
Estamos dispensados, felizmente são e salvos.
Coisa rara hoje em dia
E só a certeza que o meu Brasil um dia muda,
A ira alivia e todo esse mal a gente assimila,
Transforma em poesia!
Eu falei de quê?
Dia-a-dia da Periferia!